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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

PLATÃO: DOUTRINA DA ESCOLHA DAS PROVAS - PARTE 2



“Está evidentemente aí, meu caro Glauco, a prova que é temida pela Humanidade. Que cada um de nós possa refletir, deixando todos os estudos vãos para se entregar à Ciência, que faz a fortuna do homem. Procuremos um mestre que nos ensine a discernir entre o bom e o mau destino, e a escolher todo o bem que o céu nos proporciona. Examinemos com ele que situações humanas, separadas ou reunidas, conduzem às boas ações: se a beleza, por exemplo, unida à pobreza ou à riqueza, ou a tal disposição da alma deve produzir a virtude ou o vício; qual a vantagem de um nascimento brilhante ou comum, a vida privada ou pública, a força ou a fraqueza, a instrução ou a ignorância, enfim, tudo o que o homem recebe da Natureza e tudo quanto contém em si mesmo. Esclarecidos pela consciência, decidamos qual destino nossa alma deve preferir. Sim, o pior dos destinos seria o que a tornasse injusta, e o melhor aquele que incessantemente a conduzirá à virtude: tudo o mais nada significa para nós. Iríamos esquecer que não há escolha mais salutar após a morte do que durante a vida! Ah! Que esse dogma sagrado se identifique para sempre com nossa alma, a fim de não se deixar fascinar na Terra pelas riquezas, nem por outros males dessa natureza e que, lançando-se com avidez sobre a condição do tirano ou qualquer outro semelhante, não se exponha a cometer um grande número de males sem remédio e a sofrer outros ainda maiores.
“Segundo o relato de nosso mensageiro, o hierofante havia dito: “Àquele que escolher por último, contanto que o faça com discernimento e que seja coerente em sua conduta, será prometida uma vida feliz. O que escolher em primeiro lugar guarde-se de ser muito confiado, e que o último não se desespere.” Então, aquele que a sorte distinguiu em primeiro lugar avançou apressadamente e escolheu a mais importante tirania; levado por sua imprudência e por sua avidez, e sem olhar bastante para o que estava fazendo, não percebeu a fatalidade ligada ao objeto da escolha, que faria com que um dia comesse a carne de seus próprios filhos, além de muitos outros crimes terríveis. Mas quando considerou a sorte que havia escolhido, gemeu, lamentou-se e, esquecendo as lições do hierofante, acabou acusando como responsáveis por seus males a fortuna, os gênios, tudo o mais, exceto a si mesmo.** Esta alma era do número daquelas que vinham do céu: tinha vivido precedentemente num Estado bem governado e havia feito o bem mais pela força do hábito do que por filosofia. Eis por que, dentre as que caíam em semelhantes desenganos, as almas provenientes do céu não eram as menos numerosas, em virtude de não haverem sido provadas pelo sofrimento. Ao contrário, aquelas que, tendo passado pela morada subterrânea, haviam sofrido e visto sofrer, não escolhiam assim tão depressa. Daí, independentemente do acaso das posições a serem chamadas a escolher, resultava uma espécie de troca de bens e males para a maior parte das almas. Assim, um homem que, a cada renovação de sua vida na Terra, se aplicasse constantemente à sã filosofia e tivesse a felicidade de não ser contemplado com as últimas sortes, segundo esse relato teria grande probabilidade não somente de ser feliz neste planeta, mas, ainda, em sua viagem deste para o outro mundo e em seu retorno, de marchar pelo caminho unido do céu, e não mais pelos atalhos penosos do abismo subterrâneo.
“Acrescentou o armênio ser um espetáculo curioso ver de que maneira cada alma fazia sua escolha. Nada mais estranho e, ao mesmo tempo, mais digno de compaixão e zombaria. Na maioria das vezes a escolha era feita conforme os hábitos da vida anterior. Er tinha visto uma alma, que outrora pertencera a Orfeu, escolher a alma de um cisne, por ódio às mulheres, que lhe haviam provocado a morte, não querendo dever seu nascimento a nenhuma delas; a alma de Thomyris havia escolhido a condição de um rouxinol; e, reciprocamente, um cisne que, assim como ele, havia adotado a natureza do homem. Uma outra alma, a vigésima a ser chamada para escolher, tinha assumido a natureza de um leão: era a de Ajax, filho de Telamon. Detestava a Humanidade, ao relembrar o julgamento que lhe havia arrebatado as armas de Aquiles. Depois dessa, veio a alma de Agamenon, cujas desgraças o tornavam também inimigo dos homens: assumiu a posição de águia. A alma de Atalante, chamada a escolher na metade da cerimônia, havendo considerado as grandes homenagens prestadas aos atletas, não pôde resistir ao desejo de tornar-se atleta. Epeu, que construiu o cavalo de Tróia, tornou-se uma mulher laboriosa. A alma do bobo Teresita, uma das últimas a se apresentar, revestiu as formas de um macaco. A alma de Ulisses, a quem o acaso havia chamado por último, apresentou-se também para escolher: como a recordação de seus longos revezes lhe houvesse tirado toda a ambição, por muito tempo procurou e penosamente descobriu, num recanto, a vida tranqüila de um homem privado que todas as outras almas haviam descartado. Ao percebê-lo, disse que não teria feito outra escolha, mesmo que tivesse sido a primeira alma a ser chamada. Os animais, sejam quais forem, passam igualmente uns pelos outros ou por corpos humanos: os que foram maus tornam-se bestas ferozes e os bons, animais domesticados.
“Depois que todas as almas fizeram a escolha de uma condição, aproximaram-se de Lachesis segundo a ordem que haviam escolhido. A cada uma deu Parca o gênio que fora preferido, a fim de lhes servir de guardião durante a vida e auxiliá-las no cumprimento de seu destino. Primeiro, esse gênio as conduzia a Clotho que, com a mão e com um giro do fuso, confirmava o destino escolhido. Depois de haver tocado no fuso, o gênio a conduzia a Atropos, que enrolava o fio para tornar irrevogável aquilo que havia sido fiado por Clotho. Em seguida, avançavam até o trono da Necessidade, ao lado do qual a alma e seu gênio passavam juntos. Tão logo haviam todas passado, dirigiam-se para uma planície do Letes – o Esquecimento – onde experimentavam um calor insuportável, visto aí não haver nem árvores nem plantas. Morrendo o dia, passaram a noite junto ao rio Ameles – ausência de pensamentos sérios – cujas águas todos eram obrigados a beber, embora nenhum vaso as pudesse conter; mas os imprudentes bebiam demais. Os que o faziam sem cessar perdiam completamente a memória. Em seguida adormeciam, mas, em torno de meia-noite, ouviu-se o ribombar de um trovão, acompanhado de tremor de terra; logo as almas se dispersaram aqui e ali, pelos diversos pontos de seu nascimento terrestre, semelhante a estrelas que, de repente, cintilassem no céu. Quanto a Er, havia sido impedido de beber da água do rio; não sabia, entretanto, nem onde nem como sua alma se havia reunido novamente ao corpo; contudo, pela manhã, abrindo os olhos de repente, percebeu que se deitara sobre a fogueira.
“Tal é o mito, caro Glauco, que a tradição conserva até hoje. Ele pode preservar-nos de nossa perda: se dermos crédito a ele, passaremos felizmente o Letes e manteremos nossa alma purificada de toda mácula.”

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**Os Antigos não atribuíam à palavra tirano o mesmo sentido que lhe damos hoje. Esse nome era dado a todos aqueles que se apoderavam do poder soberano, fossem quais fossem suas qualidades, boas ou más; a História cita tiranos que fizeram o bem; como, entretanto, o contrário acontecia com mais freqüência e, além disso, para satisfazer a ambição ou perpetuar-se no poder, nenhum crime lhes era defeso, e esse vocábulo tornou-se, mais tarde, sinônimo de cruel e se aplica a todo homem que abusa de sua autoridade.
Ao escolher a tirania mais importante, a alma de que fala Er não tinha procurado a crueldade, mas simplesmente o mais vasto poder, como condição de sua nova existência; quando sua escolha tornou-se irrevogável, percebeu que esse mesmo poder arrastá-la-ia ao crime, lamentando havê-la feito e a todos acusando por seus males, exceto a si mesma. É a história da maioria dos homens que, mesmo não admitindo confessar, são os artífices de sua própria desgraça.

Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos
Ano 1, Setembro 1958 Nº 9
Allan Kardec

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