“Está
evidentemente aí, meu caro Glauco, a prova que é temida pela Humanidade. Que
cada um de nós possa refletir, deixando todos os estudos vãos para se entregar
à Ciência, que faz a fortuna do homem. Procuremos um mestre que nos ensine a
discernir entre o bom e o mau destino, e a escolher todo o bem que o céu nos
proporciona. Examinemos com ele que situações humanas, separadas ou reunidas,
conduzem às boas ações: se a beleza, por exemplo, unida à pobreza ou à riqueza,
ou a tal disposição da alma deve produzir a virtude ou o vício; qual a vantagem
de um nascimento brilhante ou comum, a vida privada ou pública, a força ou a
fraqueza, a instrução ou a ignorância, enfim, tudo o que o homem recebe da
Natureza e tudo quanto contém em si mesmo. Esclarecidos pela consciência,
decidamos qual destino nossa alma deve preferir. Sim, o pior dos destinos seria
o que a tornasse injusta, e o melhor aquele que incessantemente a conduzirá à
virtude: tudo o mais nada significa para nós. Iríamos esquecer que não há
escolha mais salutar após a morte do que durante a vida! Ah! Que esse dogma
sagrado se identifique para sempre com nossa alma, a fim de não se deixar
fascinar na Terra pelas riquezas, nem por outros males dessa natureza e que,
lançando-se com avidez sobre a condição do tirano ou qualquer outro semelhante,
não se exponha a cometer um grande número de males sem remédio e a sofrer
outros ainda maiores.
“Segundo
o relato de nosso mensageiro, o hierofante havia dito: “Àquele que escolher por
último, contanto que o faça com discernimento e que seja coerente em sua
conduta, será prometida uma vida feliz. O que escolher em primeiro lugar guarde-se
de ser muito confiado, e que o último não se desespere.” Então, aquele que a
sorte distinguiu em primeiro lugar avançou apressadamente e escolheu a mais
importante tirania; levado por sua imprudência e por sua avidez, e sem olhar
bastante para o que estava fazendo, não percebeu a fatalidade ligada ao objeto
da escolha, que faria com que um dia comesse a carne de seus próprios filhos, além
de muitos outros crimes terríveis. Mas quando considerou a sorte que havia
escolhido, gemeu, lamentou-se e, esquecendo as lições do hierofante, acabou
acusando como responsáveis por seus males a fortuna, os gênios, tudo o mais,
exceto a si mesmo.** Esta alma era do número daquelas que vinham do céu: tinha
vivido precedentemente num Estado bem governado e havia feito o bem mais pela
força do hábito do que por filosofia. Eis por que, dentre as que caíam em
semelhantes desenganos, as almas provenientes do céu não eram as menos
numerosas, em virtude de não haverem sido provadas pelo sofrimento. Ao
contrário, aquelas que, tendo passado pela morada subterrânea, haviam sofrido e
visto sofrer, não escolhiam assim tão depressa. Daí, independentemente do acaso
das posições a serem chamadas a escolher, resultava uma espécie de troca de
bens e males para a maior parte das almas. Assim, um homem que, a cada
renovação de sua vida na Terra, se aplicasse constantemente à sã filosofia e
tivesse a felicidade de não ser contemplado com as últimas sortes, segundo esse
relato teria grande probabilidade não somente de ser feliz neste planeta, mas,
ainda, em sua viagem deste para o outro mundo e em seu retorno, de marchar pelo
caminho unido do céu, e não mais pelos atalhos penosos do abismo subterrâneo.
“Acrescentou
o armênio ser um espetáculo curioso ver de que maneira cada alma fazia sua
escolha. Nada mais estranho e, ao mesmo tempo, mais digno de compaixão e
zombaria. Na maioria das vezes a escolha era feita conforme os hábitos da vida
anterior. Er tinha visto uma alma, que outrora pertencera a Orfeu, escolher a
alma de um cisne, por ódio às mulheres, que lhe haviam provocado a morte, não
querendo dever seu nascimento a nenhuma delas; a alma de Thomyris havia
escolhido a condição de um rouxinol; e, reciprocamente, um cisne que, assim
como ele, havia adotado a natureza do homem. Uma outra alma, a vigésima a ser
chamada para escolher, tinha assumido a natureza de um leão: era a de Ajax,
filho de Telamon. Detestava a Humanidade, ao relembrar o julgamento que lhe
havia arrebatado as armas de Aquiles. Depois dessa, veio a alma de Agamenon,
cujas desgraças o tornavam também inimigo dos homens: assumiu a posição de
águia. A alma de Atalante, chamada a escolher na metade da cerimônia, havendo
considerado as grandes homenagens prestadas aos atletas, não pôde resistir ao
desejo de tornar-se atleta. Epeu, que construiu o cavalo de Tróia, tornou-se uma
mulher laboriosa. A alma do bobo Teresita, uma das últimas a se apresentar,
revestiu as formas de um macaco. A alma de Ulisses, a quem o acaso havia
chamado por último, apresentou-se também para escolher: como a recordação de
seus longos revezes lhe houvesse tirado toda a ambição, por muito tempo
procurou e penosamente descobriu, num recanto, a vida tranqüila de um homem
privado que todas as outras almas haviam descartado. Ao percebê-lo, disse que não
teria feito outra escolha, mesmo que tivesse sido a primeira alma a ser
chamada. Os animais, sejam quais forem, passam igualmente uns pelos outros ou
por corpos humanos: os que foram maus tornam-se bestas ferozes e os bons,
animais domesticados.
“Depois
que todas as almas fizeram a escolha de uma condição, aproximaram-se de
Lachesis segundo a ordem que haviam escolhido. A cada uma deu Parca o gênio que
fora preferido, a fim de lhes servir de guardião durante a vida e auxiliá-las
no cumprimento de seu destino. Primeiro, esse gênio as conduzia a Clotho que,
com a mão e com um giro do fuso, confirmava o destino escolhido. Depois de
haver tocado no fuso, o gênio a conduzia a Atropos, que enrolava o fio para
tornar irrevogável aquilo que havia sido fiado por Clotho. Em seguida,
avançavam até o trono da Necessidade, ao lado do qual a alma e seu gênio
passavam juntos. Tão logo haviam todas passado, dirigiam-se para uma planície
do Letes – o Esquecimento – onde experimentavam um calor insuportável, visto aí
não haver nem árvores nem plantas. Morrendo o dia, passaram a noite junto ao
rio Ameles – ausência de pensamentos sérios – cujas águas todos eram obrigados
a beber, embora nenhum vaso as pudesse conter; mas os imprudentes bebiam
demais. Os que o faziam sem cessar perdiam completamente a memória. Em seguida
adormeciam, mas, em torno de meia-noite, ouviu-se o ribombar de um trovão,
acompanhado de tremor de terra; logo as almas se dispersaram aqui e ali, pelos
diversos pontos de seu nascimento terrestre, semelhante a estrelas que, de
repente, cintilassem no céu. Quanto a Er, havia sido impedido de beber da água
do rio; não sabia, entretanto, nem onde nem como sua alma se havia reunido novamente
ao corpo; contudo, pela manhã, abrindo os olhos de repente, percebeu que se
deitara sobre a fogueira.
“Tal é
o mito, caro Glauco, que a tradição conserva até hoje. Ele pode preservar-nos
de nossa perda: se dermos crédito a ele, passaremos felizmente o Letes e
manteremos nossa alma purificada de toda mácula.”
**Os
Antigos não atribuíam à palavra tirano o mesmo sentido que lhe damos hoje. Esse
nome era dado a todos aqueles que se apoderavam do poder soberano, fossem quais
fossem suas qualidades, boas ou más; a História cita tiranos que fizeram o bem;
como, entretanto, o contrário acontecia com mais freqüência e, além disso, para
satisfazer a ambição ou perpetuar-se no poder, nenhum crime lhes era defeso, e
esse vocábulo tornou-se, mais tarde, sinônimo de cruel e se aplica a todo homem
que abusa de sua autoridade.
Ao
escolher a tirania mais importante, a alma de que fala Er não tinha procurado a
crueldade, mas simplesmente o mais vasto poder, como condição de sua nova
existência; quando sua escolha tornou-se irrevogável, percebeu que esse mesmo
poder arrastá-la-ia ao crime, lamentando havê-la feito e a todos acusando por
seus males, exceto a si mesma. É a história da maioria dos homens que, mesmo
não admitindo confessar, são os artífices de sua própria desgraça.
Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos
Ano 1, Setembro 1958 Nº 9
Allan Kardec
Sem comentários:
Enviar um comentário
Se gosta do conteúdo do nosso blog, sinta-se à vontade para deixar o seu comentário.
Obrigada.
Abraços de Luz,
Espaço Consciência Pura
Administradoras: Idália Henriques e Cris Henriques :)