Imagem encontrada aqui. |
“O relato que vos quero trazer à memória – diz
Sócrates a Glauco – é o de um homem de coração: Er, o armênio, originário da
Panfília. Ele tinha sido morto numa batalha. Dez dias mais tarde, como levassem
os cadáveres já desfigurados dos que com ele haviam tombado, o seu foi
encontrado são e intacto. Transportaram-no para sua casa a fim de fazer os
funerais e, no segundo dia, quando foi posto sobre a fogueira, reviveu e contou
o que tinha visto na outra vida.
“Tão
logo sua alma havia saído do corpo, viu-se a caminho com uma porção de outras
almas, chegando a um lugar maravilhoso, de onde se viam, na Terra, duas
aberturas vizinhas uma da outra, e duas outras no céu, correspondentes àquelas.
Entre essas duas regiões estavam assentados os juízes. Assim que pronunciavam
uma sentença, ordenavam aos justos tomarem lugar à direita, por uma das
aberturas do céu, após lhes haver fixado no peito um letreiro contendo o
julgamento pronunciado em seu favor, e ordenando aos maus que tomassem o
caminho da esquerda, localizado nos abismos, levando às costas um letreiro
semelhante, onde estavam relacionadas todas as suas ações. Quando chegou sua
vez de apresentar-se, os juízes declararam que deveria levar aos homens a
notícia do que se passava nesse outro mundo, ordenando-lhe que ouvisse e
observasse tudo quanto a ele se referisse.
“A
princípio viu desaparecerem as almas que haviam sido julgadas, umas subindo
para o Céu, outras descendo à Terra, através de duas aberturas que se
correspondiam: enquanto pela segunda abertura da Terra via saírem almas
cobertas de poeira e imundície, ao mesmo tempo desciam almas puras e sem mácula
pela outra porta do céu. Todas pareciam vir de uma longa viagem e se demoravam
prazerosamente numa campina, qual se fora um local de reunião. As que se
conheciam saudavam-se mutuamente e pediam notícias do que se passava nos
lugares de onde vinham: o Céu e a Terra. Aqui, entre gemidos e lágrimas, era
lembrado tudo quanto haviam sofrido ou visto sofrer quando estagiavam na Terra;
ali, contavam as alegrias do Céu e a felicidade de contemplar as maravilhas
divinas.
“Seria
demasiado longo seguir todo o discurso do armênio, mas eis, em suma, o que
dizia. Cada uma das almas suportava dez vezes a pena das injustiças que havia
cometido na Terra. A duração de cada punição era de cem anos, duração natural da
vida humana, a fim de que o castigo fosse sempre decuplicado para cada crime.
Assim, os que fizeram perecer os seus semelhantes em grande quantidade;
atraiçoaram cidades ou exércitos; reduziram seus concidadãos à escravidão ou
cometeram outras malvadezas eram atormentados ao décuplo para cada um desses
crimes. Os que, ao contrário, só espalharam o bem em torno de si e foram justos
e virtuosos, recebiam na mesma proporção a recompensa de suas boas ações. O que
dizia das crianças, que a morte leva pouco depois do nascimento, merece menores
comentários; mas assegurava que ao ímpio, ao filho desnaturado e ao homicida
estavam reservados os mais cruéis sofrimentos, enquanto ao homem religioso e ao
bom filho as felicidades mais abundantes.
“Estava
presente quando uma alma perguntara a outra onde estava o grande Ardieu. Esse
Ardieu havia sido tirano numa cidade da Panfília, mil anos antes; tinha matado
seu velho pai, o irmão mais velho e cometido, ao que se dizia, vários outros
crimes hediondos. “Ele não vem nem virá jamais aqui”, respondeu a alma. A esse
respeito todos fomos testemunhas de um espetáculo horroroso. Quando estávamos
prestes a sair do abismo, após haver cumprido nossas penas, vimos Ardieu e
vários outros, cuja maioria era formada de tiranos como ele, ou de seres que,
em situação particular, tinham cometido grandes crimes: em vão esforçavam-se
por subir; e todas as vezes que esses culpados, cujos crimes não tinham remédio
ou não haviam sido suficientemente expiados, tentavam sair, o abismo os repelia,
bramindo. Então, personagens detestáveis, de corpos inflamados, que lá se
encontravam, acorriam a esses bramidos. Primeiramente levaram à força alguns
desses criminosos; quanto a Ardieu e os outros, ataram-lhes os pés, as mãos, a
cabeça e, lançando-os por terra e os maltratando violentamente à custa de
pancadas, os arrastaram para fora da estrada, através de sarças sangrentas,
repetindo às sombras à medida que passavam algumas delas: “Eis os tiranos e os
homicidas; nós os arrastamos para lançá-los no Tártaro.” Essa alma acrescentava
que, entre tantos casos terríveis, nada lhe causava mais pavor que o bramido do
abismo, sendo para elas uma suprema alegria poderem sair em silêncio.
“Tais
eram, aproximadamente, os julgamentos das almas, seus castigos e suas
recompensas.
“Após
sete dias de repouso nessa campina, as almas tiveram que partir no oitavo,
pondo-se a caminho. Ao cabo de quatro dias de viagem, perceberam do alto, em
toda a superfície do Céu e da Terra, uma luz imensa, aprumada como uma coluna e
semelhante ao quartzo irisado, porém mais brilhante e mais pura. Um só dia foi suficiente
para alcançá-la e então viram, mais ou menos no meio dessa muralha, a extremidade
das cadeias que se ligam aos céus. É isso que os sustenta, é o envoltório da
nau do mundo, é o vasto cinturão que o circunda. No topo estava suspenso o Fuso
da Necessidade, em torno do qual se formavam todas as circunferências.*
“Em
torno do fuso, e a distâncias iguais, sentavam-se em tronos as três Parcas,
filhas da Necessidade: Lachesis, Clotho e Atropos, vestidas de branco e
coroadas com uma pequena faixa. Cantavam, associando-se ao concerto das
Sereias: Lachesis, o passado; Clotho, o presente, e Atropos, o futuro. Com a
mão direita Clotho tocava vez por outra o exterior do fuso, cabendo a Atropos,
com a mão esquerda, imprimir movimentos aos círculos interiores, enquanto alternadamente,
ora com uma mão, ora com a outra, Lachesis tocava no fuso e numa espécie de
balança interior.
“Tão
logo chegavam, as almas tinham que se apresentar a Lachesis. Em primeiro lugar,
um hierofante as colocava ordenadamente em fila; depois, tomando do colo de
Lachesis as sortes ou números em que cada alma devia ser chamada, bem como as
diversas condições humanas oferecidas à
sua escolha, subia a um estrado e falava assim: “Eis o que disse a virgem
Lachesis, Filha da Necessidade: Almas
passageiras, ireis iniciar uma nova carreira e renascer na condição mortal. Não
se vos assinalará o gênio; vós mesmas o escolhereis. Escolherá aquela que a
sorte chamar em primeiro lugar e essa escolha será irrevogável. A virtude não
pertence a ninguém: alia-se àquele que a dignifica e abandona quem a despreza.
Cada um é responsável pela escolha que faz, Deus é inocente.” A estas palavras
ele espalhava os números e cada alma apanhava o que lhe caía à frente, exceto o
Armênio, a quem isso não era permitido. Em seguida o hierofante desvendou-lhes
todos os gêneros de vida, em maior número do que as almas ali reunidas. A
variedade era infinita; encontravam-se ao mesmo tempo todas as condições
humanas, assim como a dos animais. Havia tiranias: umas duravam até a morte,
enquanto outras, interrompidas bruscamente, acabavam na pobreza, no exílio e no
abandono. A ilustração mostrava-se sob diversas faces: podia-se escolher a
beleza, a arte de agradar, os combates, a vitória ou a nobreza de raça. Estados
completamente obscuros em todos os sentidos, ou intermediários, misturas de
riqueza e de pobreza, de saúde e de doença, eram oferecidos à escolha: havia
também condições de mulher que apresentavam a mesma variedade.
_______
*São
as diversas esferas dos planetas ou os diversos andares do céu, girando em
torno da Terra, fixado ao eixo daquele mesmo fuso (V.COUSIN).
Continua...
Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos
Ano 1, Setembro 1958 Nº 9
Allan Kardec
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminar
ResponderEliminarSrª Idália, Sr. Cris,
O artigo acima foi psicografado( ditado por um espírito desencarnado) ou retirado diretamente da obra de Sócrates ( Sócrates encarnado)?
Obrigado